EUNICE…

Sempre tive muito apreço por pessoas práticas, despachadas e leves, pois a vida pede levezas e um bocado generoso de delicadezas. Isso não quer dizer que encontraremos pessoas completamente construídas nessa ordem de adjetivos. Umas tem delicadeza, mas falta leveza; outras são práticas, porém sem delicadeza alguma… Enfim, a gente aprende a conviver com uma diversidade imensa de pessoas que passam por nós e acabamos por aceitar cada uma delas como são.

Gosto de gente!

Gosto do ser humano por companhia, ainda que isso implique em não me acrescentar nada, o que não acredito, porque quem chega até nós tem algo a nos deixar e ao mesmo tempo levar um pouco de nós!

O que seria de mim se não fossem todos aqueles que passaram, passam e continuarão passando pelas minhas estradas, seja aqui ou em qualquer canto desse mundo sem fim…

Dona Eunice é uma dessas pessoas, muito vivida em experiência e idade. Senhora dos seus 84 anos. Altiva, de andar lampeiro e fala corrida.

Prática! Prática até demais.

Não diria que seja leve!

Típico da pessoa idosa que se sente só e quando agarra numa prosa é difícil de parar.

Fala de tudo, quase precisando de um intérprete, por conta da ligeireza na língua. Sua conversa não tem ponto, vírgulas… Não há freios ou respirações.

Sexta-feira é dia de faxina.

As donas de casa, logo pela manhã começam abrindo portas e janelas, sacudindo tudo, colocando roupas no varal. Parece uma orquestra, em falação e movimento. Uma sincronia compartilhada de uma forma quase proposital.

O bom mesmo é a hora de lavar a calçada.

As senhoras saem quase que simultaneamente, com mangueiras e vassouras em punho.

Da janela da minha casa, que além da vidraça tem também um gradil, por questão de segurança, o que não compreendo, pois o bairro é calmo por demais, posso ver quase uma dúzia de senhoras entre os dois lados das calçadas, falando igual maritacas, todas juntas e ao mesmo tempo…

A água corre frouxa, rua abaixo e eu penso na aflição dos ambientalistas em relação ao desperdício desse líquido tão precioso…

Ah! Também penso nos bolsos dessas famílias, pois água custa caro! Mas elas? Não estão nem aí… Diria que são mulheres bem leves, despachadas, mas sem delicadeza alguma,

Enfim, Dona Nicinha, está no meio delas, todas as sextas, no mesmo horário, fazendo parte dessa grande orquestra de domésticas…

Segura a vassoura, mas não varre. Na verdade, a vassoura funciona como uma muleta, para que ela não caia.

Fala! Como disse antes, de um fôlego só! Sem parar! Fala alto e incansavelmente.

Não participo dessa apresentação musical porque escolhi faxinar a casa às segundas-feiras e, explico a razão: limpando nas segundas, a semana inteira a casa permanece organizada. E aos fins de semana a família se preocupa com tudo, menos com a casa limpa… querem mais é curtir o aconchego de estarem reunidos.

Mas, voltando à Sinfonia da Limpeza, Eunice se destaca, não no ato de limpar, pois nem a torneira ela abre, se sobressai na falação.

Nicinha me diverte pela vivacidade e humor. É idosa, mas não é rabugenta.

Acho, que depois de muito viver, ganhamos ou temos o direito de desaguar os sentimentos como bem queremos.

Sexta-feira passada resolvi assistir à apresentação de camarote.

Abri o portão e fui ter um cadinho de prosa com as vizinhas, sem vassoura é claro!

Dona Eunice chegou, arrastando a vassoura.

Fizemos rodinha!

Dessa vez com torneiras fechadas.

Eunice estava nervosa. Indignada!

— Nunca fui ao ginecologista! Foi logo desembuchando que, em 84 anos, dado à luz a sete filhos e ter sido casada por quase 50 anos, ninguém nunca tinha visto sua perereca.

Izilda, curiosa que era, foi perguntando:

— Nem seu marido viu?

— Homem nenhum, Zildinha! Agora Lúcia disse que tenho que ir ao médico. Disse que é de rotina. Rotina a essa altura da vida? O médico que veja a perereca dela, mas a minha não vai ver não!

Iralva não deixou por menos:

— E como você fazia amor com Toniquinho, Nice?

— Que amor? Fazer amor? A gente fazia era filho, debaixo do lençol, sem muito esfrega-esfrega e de luz apagada. E agora querem que eu mostre o que nunca mostrei para ninguém?

Eu não pude deixar de perguntar:

— Afinal de contas, você vai ou não vai ao ginecologista, Nicinha?

— Não sei! Vai depender de como estará minha vontade no dia da consulta.

Aquele dia terminaram de lavar a calçada bem mais tarde por conta de uma perereca.

Passado um mês, eis que encontro Eunice no mesmo consultório médico.

Eunice ao me ver disse alto e em bom tom:

— Veio mostrar a perereca, minha filha?

Eu apenas ri e balancei a cabeça afirmando.

Ela entrou primeiro do que eu.

Depois de quase uma hora saiu do consultório, destemida e tranquila.

Olhou para mim batendo a mão nas partes íntimas dizendo:

— Maria Rita, a minha perereca ele não viu. Se ele quiser que veja a sua!

Hoje, quando encontro Nicinha, no auge dos seus 93 anos, pergunto:

— Querida, e a perereca?

Ela diz orgulhosa e rapidamente:

— Minha perereca nunca vai ser vista por ninguém!

Facebook Comments Box