Nasci e vivi por muitos anos num bairro classe média para remediada, na década de 60.
Tempos felizes, onde não tínhamos televisão e a vida se resumia a brincadeiras, escola, igreja, tarefas de casa, que eram poucas, mas a mãe queria que tivéssemos responsabilidades, então fazíamos coisinhas bobas, como varrer o quintal, regar plantinhas, não deixar toalhas molhadas sobre as camas…
Os pais não eram sabidos. Conheciam o essencial e isso bastava.
Fomos criados ao pé dá mãe e aos olhos do pai.
Depois de um dia longo, no qual havia tempo para se fazer tudo e ainda sobrava mais um tanto para não se fazer nada, a gente era feliz.
Tempos nos quais a vida corria tranquila.
Tinha horário para tudo!
Ao fim da tarde, quando o pai chegava do trabalho, ficávamos ansiosos para que ele tomasse seu banho rapidamente e fosse para a frente do “Rádio Vitrola Valvulado Isabela”, onde ouvíamos discos ou programas de notícias.
Papai gostava de ouvir A Hora do Brasil, só então, depois de acabar o programa é que se podia escolher um disco, que era cuidadosamente manipulado, para que a família toda pudesse degustar do momento musical que era bem apurado.
Também tínhamos nossos momentos de correr soltos, pelo bairro, mas não se podia ir muito longe.
O espaço era imenso, seguro.
Conhecíamos todos os vizinhos.
Ganhávamos doces, balas e até puxões de orelhas das vizinhas e tudo era visto como forma de respeito dos mais novos pelos mais velhos.
Era bom demais sentarmos nas calçadas para trocar figurinhas repetidas, dos álbuns de futebol ou das ternurices de “Amar é…” da Kim Grove.
Num desses fins de tarde, quando estávamos compenetrados nas trocas, chegou um caminhão de mudança, três casas à frente da minha, do outro lado do passeio.
Era incrível para nós quando chegava uma nova família no bairro. Significava novos amigos, animais diferentes dos nossos, um vizinho a mais para nos dar doces ou broncas.
Naquele dia, não foi diferente. Olhávamos cada movimento com atenção.
O caminhão era pequeno, para a casa que era bem grande.
Tudo foi descarregado em poucos minutos.
Logo após o caminhão partir, chegou um carro e dele desceu um casal de idosos e, com eles uma gaiola grande e redonda, com um papagaio que falava mais do que matraca de semana santa.
Olhamos uns para os outros e não ficamos muito contentes, afinal não havia crianças.
Falei:
— Talvez eles tenham netos e quando eles vierem passar as férias teremos gente nova para brincar.
Mas os dias foram passando e a casa sempre fechada, sem muita agitação.
O que chamava a atenção era o jardim que florescia a olhos vistos. Porém nunca víamos ninguém cuidando dele.
Eu era muito curiosa. Queria saber de tudo!
Contei a história para o papai.
Perguntei como era possível ter um jardim tão lindo sem nunca termos visto alguém cuidar dele?
Papai foi logo respondendo:
— Deus ajuda quem cedo madruga e eu vejo, todos os dias, bem antes do sol nascer, uma senhora e um senhor cuidando do jardim.
Papai saía cedo para trabalhar e via coisas que não víamos.
Quando as roseiras começaram a florir foi um espanto para todos os que ali passavam.
Rosas amarelas brotavam de todos os lugares, infestando as grades que cercavam a casa.
Nunca as professoras foram tão presenteadas com lindas rosas de cor tão ímpar e vibrante quanto naqueles tempos.
Rosas roubadas pelos meninos e também pelas meninas, como forma de demonstrar afeição por suas mestras.
Nunca consegui apanhar uma rosa sequer. Tinha medo! E se me vissem? E se contassem à mamãe?
Eu amava as rosas amarelas.
Passei anos amando as rosas amarelas.
Depois de um tempo, sem que ninguém notasse, sem que alguém percebesse, as rosas foram se definhando. A terra, coberta por grama tornou-se ressequida e a aridez instalou-se naquele jardim majestoso.
Estava com meus 13 anos, e ainda sentava todo fim de tarde na calçada, agora não mais para trocar figurinhas, mas para falar dos meninos bonitos da escola. Foi quando vi aquela senhora, de olhar triste, olhando de soslaio pela janela.
Levantei . Fui até o portão da sua casa.
Xereta que era, perguntei seu nome.
Ela respondeu-me em tom baixíssimo:
— Dulce.
Perguntei se podia entrar.
Ela acenou que sim.
Abriu a porta.
Na sala, uma mesa e duas cadeiras.
— Você mora sozinha?
Ela entristeceu.
— Agora sim! Meu Alfredo se foi.
Dentro de um diálogo quase monossílabo e insuportável, para mim que falava tanto, ela foi se ajeitando e respondendo, sem vontade, o que eu desejava saber.
— Por que a senhora nunca ficou brava com os meninos e meninas que pegavam suas rosas?
— Porque elas seriam dadas para quem eles admiravam – respondeu.
E por que seu jardim se foi?
— Porque meu Alfredo não está mais aqui. As rosas eram lindas porque tinham as nossas mãos juntas, cuidando de cada uma delas.
Passei a gostar demais da Dona Dulce e lhe fazer visitas diárias.
Nenhuma vizinha trocou alguma conversa com essa mulher a não ser esporádicas saudações, como mera formalidade.
Mas eu conhecia Dulce, que era realmente doce, silenciosa e me dava paz.
Foram muitas horas de conversas, com um ser amável, solitário e de uma sabedoria de doer.
Parcas palavras descreviam um mundo inteiro.
Passei a compreender os detalhes mais belos e perfeitos em suas pausas, longas pausas.
Que senhora era aquela que tudo sabia e dava conta de explicar sem muito falar…?
Dulce foi a segunda pessoa a me dar um livro. Na verdade, um atlas, explicando-me que aquele livro iria me fazer conhecer o mundo inteiro.
Depois ganhei dela um bibelot. Era um casal de gatinhos brancos, um maior e um menor, que ao colocarmos juntos pareciam mãe e filho se beijando carinhosamente.
Passado um tempo daqueles dois presentes Dulce também se foi… silenciosamente.
A bondade do meu pai e de alguns vizinhos lhe deram uma morada eterna.
Até hoje, passados mais de 50 anos, conservo as duas estátuas pequeninas dos dois gatinhos.
O atlas se perdeu, em alguma parte do imenso mundo que trazia em seus traços
E quando vejo uma rosa amarela, bem, é impossível não me lembrar de Dulce e do seu jardim.
Inevitável não sentir sua forte presença, soprando em mim, os tempos de infância e as lembranças indeléveis que nos acompanham por serem significativas demais.