A cabeça doía de maneira contínua e lancinante.
As horas não passavam.
Mitigava dentro do estômago os restos de alimentos que sobraram depois da sucessão de vômitos.
Não era um eclipse, apocalipse ou muito menos qualquer evento escatológico.
Uma explosão verborrágica de palavras e sangue estancava e, depois de represada, por alguns instantes, escoava desordenadamente.
Enquanto muitos pensavam que Andrusa estava com um princípio de doença ruim, ela navegava dentro de si, numa embarcação fluida que balançava forte, como roupas no varal, em dias de ventania.
Tudo era branco. Um branco absoluto, na ausência de todas as cores.
A vó torcia-se em puro desespero e perguntava repetidamente:
— Zé, é derrame?
— A mãe da menina dizia:
— Mãe, hoje se fala AVC – Acidente Vascular Cerebral.
Zé, um pobre coitado que vivia em cima do lombo de um cavalo o dia todo, dentro de toda sua simplicidade, dava conta de resolver as situações mais absurdas que aconteciam com aquela menina, dentro e fora de casa.
— Sei não mulher, da última vez o doutor disse que não achou nada de diferente.
A tia, professora aposentada há anos, que fofocava na mesma velocidade que tricotava, engolida pelas cercanias de Pasárgada, apenas dizia que Andrusa tinha sido tomada por um demônio e que estava em estado de possessão.
— Essa menina nem batizada foi – dizia aos berros! Fez o Zé comprar uma televisão com uma máquina de escrever embutida nela e, como se não bastasse essa tv que escreve e que mostra o mundo inteiro, tem aquela televisão bem pequenininha que ela segura nas mãos o dia todo! Sem contar o nome que você deu à sua filha, Heloísa…!
Heloísa era daquelas pessoas que chamamos de “despirocada”. Procurou um homem para se casar que tivesse o nome de Abelardo. Tinha que ser Abelardo, pois achava lindo demais o amor trágico de Pedro Abelardo e Heloísa de Argenteuil.
Pobre Andrusa! Tão trágico foi o amor dos pais que acabou indo morar com os avós e uma tia solteirona.
Uma vida tão normal dentro de uma normalidade que não existe.
Enquanto isso, eu, de longe, mas de bem longe, à uma distância na qual podia sentir o pulsar da mais leve respiração, assistia, sentada na cadeira do quarto de Van Gogh, todas aquelas idiossincrasias absurdamente exacerbadas.
Eu era Andrusa.
Andrusa era-me.
Duas numa só, num eixo simbiótico, amalgamadas, eu e ela, numa cinestesia/sinestesia imensurável.
Provávamos por pura empatia, em ondas sinérgicas, que o universo nos abarca por vibrações.
Aquela menina, onde eu era ela e ela era eu, surtava numa convulsão de ansiedades urgentes e emergentes.
Convulsionava sensações as quais não continha dentro de si.
As sensações também me afligiam.
Siamesas, grudadas pelas informações que brotavam sem cessar, dentro de um mundo árido e individual.
Compreendia Andrusa, como ela a mim, nas nossas convulsões de desejos, de esperas, de ansiedades, vontades desenfreadas e famintas por sermos ouvidas, acolhidas… Talvez abraçadas por um lenitivo que controlasse nossas sinapses desordenadas.
Duas partes de Kafka, assim como o casulo e a borboleta… o corpo e a barata…
A metamorfose alucinada do inacabado, sempre pronto para novas transformações.
Eu e Andrusa, as duas numa só Medusa!
OBS.: Esse conto compõe a coletânea organizada pelo Selo Editorial STARLING – ARQUÉTIPOS DO ABSURDO.