TERCEIRA SESSÃO…

As sessões psicanalíticas não possuem apresentações, prefácios, posfácios, introitos. Elas apenas fluem entre o paciente e o seu terapeuta. Minha terapeuta são as letras, essa profissional por excelência.

Sou protagonista das minhas intempéries que são construídas pela minha forma de ver o mundo, que é tão peculiar. Aliás, para mim, todos os seres humanos são peculiares.

Para sair do óbvio e facilitar a fluência das minhas sessões, me despi de todos os meandros das estruturas básicas.

Não há sumário, pois cada visita com essa senhora que me ouve, por meio das minhas palavras, tem um fluxo frenético, com algumas pausas.

Exclui as datas e também os momentos que precisei parar para respirar, me alimentar, hidratar, afinal, corre um fogo incessante em mim, que já de início me queima e é a própria combustão para que eu seja completamente pontual, ainda que isso seja um pouco difícil por ser eu prolixa, construída e moldada por figuras de linguagem.

Sou uma fruta, que por vezes se come de maneira temporã e noutras caída do pé, quase passada.

Há quem me prefira verde, como as mangas, que ainda rijas, vertendo leite, são fatiadas e mastigadas com sal.

Apesar de me preocupar com as levezas, como forma de manter protegida a minha sanidade, é quase impossível não demarcar as agruras ou as lâminas que marcam a pele em profundas fendas.

Um momento meu, onde posso mensurar a vulnerabilidade, as fragilidades e profusões humanas… As minhas profusões, sem ser interrompida, truncada… Só ouvida e, eu me ouço, com abnegação, bem de dentro, em sussurros ou gritos.

A psiquê ainda é um mistério.

A mente e a alma são caminhos quase que inatingíveis diante da ciência. Há apenas suposições sobre nossa mente e quando ela descarrilha resta somente paliativos que nos entorpecem e, em momento oportuno, explicarei sobre os mascaramentos dos psicotrópicos.

Minha vida, ouvida em palavras, não como forma de martírio, mas para que compreendam que ninguém está só e que tem tanto ainda por se compreender, por aceitar e por fim superar – se é que exista superações plenas.

Assim como eu tantos outros, mergulhados em distopias diluídas de maneira imperceptível na realidade, mas o que é real ou irreal?

Tantas coisas que tocamos, jurando fervorosamente que são reais e tantas outras ainda mais palpáveis e personificadas que nos passam como matéria de sonhos.

Uma ilha onde estamos ao centro, vazios e solitários, ladeados de águas mansas ou mar revolto. Uma ilha de silêncios, estática e distante, impenetrável por visitantes, sem um banco de areia para dar suporte aos pés – esses tão frágeis quanto a própria mente.

O que seguem são dias de seres mortais, materializados em humanos sobre a face da terra.

Vida de quem, muitas vezes, por falta de escolhas ou por compromisso com a vida, deixam de si para se voltarem aos outros, quase sem preparo, sem conhecer o terreno que estão pisando. Talvez pisem em pétalas de flores ou então se machuquem em estilhaços de antigas minas, porque a maioria do caminho é composta por campos minados.

Um desenrolar de capítulos que divido com aqueles que nunca desistem e que são fortes, sendo também, acima de tudo, otimistas e esperançosos.

Diário real, que alenta e que também choca.

Sessões provocativas que em alguns instantes pode embrulhar o estômago dos mais suscetíveis e, daqueles que por conveniência, se autodeclaram frágeis e sensíveis demais e que eu, sem pudor algum, aponto, sem julgamento profundo, como egoístas e premeditadamente individualistas.

São apenas dias, em que me vejo em solidão absoluta, não reclamando das ausências, mas me indignando com os descasos e só você, minha querida terapeuta, pode me acolher, sem nada dizer, apenas me deixando falar e falar e falar e falar…

Eu assumi muitas responsabilidades. Até mesmo aquelas, as quais não tive estrutura e conhecimentos suficientes para enfrentá-las. Assumi porque não teve quem as tomasse para si e porque minha ética não me permitiu que eu fizesse outra escolha.

Dizem que sempre podemos escolher. Afirmam veemente que sempre há escolhas. É uma prerrogativa muito genérica, superficial e falsa.

Em certos momentos não há tempo e nem opção de escolhas.

Compartilho, ao longo desse meu longa-metragem, que jamais será sucesso de bilheteria e muito menos Best-Seller, uma saga cotidiana, que perdura como mantra, como um disco arranhado, um triste fado, onde há dias que compreendo e acato como uma devota do Santíssimo e, noutros me rebelo e expurgo as mais horrendas profanações.

Você não me julga

Não aponta dedos e nem me critica!

Também não me afaga e nem esboça empatia.

É plenamente profissional.

Apenas toma para si os retalhos que cabe e elabora suas próprias colchas… seus próprios mosaicos – sejam eles coloridos ou a preto e branco.

Vir aqui e depositar, delicadamente, meu corpo, nesse divã, muitas vezes recoberto pela frieza do cetim ou pela maciez do veludo, meu corpo cansado, pesado ou flutuante como espumas ardentes, é libertador… É catártico!

E você muda, silente, reticente, fluente em espaços, para que eu os preencha, com minhas aflições alucinadas.

Posso lhe perguntar, apesar de saber que terei respostas indefinidas, mas quantas sessões serão necessárias para uma cura?

Não me olhe com essa cara de quem já está me vendo como ansiosa e ávida por resultados.

Compreendo!

Há pessoas que passam a vida inteira dependente de você, que se sente poderosa. Uma terapeuta indispensável…

Comigo acontecerá o mesmo?

Esse barulho do seu metrônomo, que vai cadenciando meticulosamente as minhas composições melódicas, muitas vezes aflige meus ouvidos e dispara meu coração.

Irrita-me você olhar, disfarçadamente para o relógio enorme na parede, sem números, mas com ponteiros gigantes, bem à sua frente.

Mas você não fala. Só me olha e eu já sei que preciso levantar.

Parece que compreendi que seus serviços profissionais são necessários e que já é quase impossível não querer voltar.

Estou pensando em três sessões por semana. Nem mais e nem menos! Três é a medida exata para deglutir o que, silenciosamente você me induz a fazer… Sugestões de como seguir, aliás, o que você mais faz é sugestionar. Gosto disso. Não há imposições. Posso ir e vir. Recomeçar e retomar ao ponto de partida. Regredir quantas vezes for preciso e depois retornar, sem culpas, sem remorsos, sem precisar fazer prestações de contas a ninguém, porque você me faz compreender que devemos sempre ser funcionários autônomos, ainda que isso implique em riscos de não ter estabilidade alguma.

Olha! Sua auxiliar já lhe alertou do esgotamento do meu tempo. Quando esse seu relógio imenso e todo preto fica com essa luz vermelha, é porque meu tempo acabou e ela me espera lá fora.

Ela me dá uma nova caneta e algumas folhas em branco, para o nosso próximo encontro.

E eu, que pensei que não passaria da primeira sessão, vi em você minha tábua de salvação.

Grata, doutora!

Sabe que estarei aqui novamente.

É tudo o que me resta, apesar de não gostar dessa dependência!

Fica tranquila!

Eu volto!

Comecei a gostar dessa disciplina que talvez me ajude a manter um fluxo frequente em tantas outras coisas, tornando-me menos anormal, menos avessa e mais complacente comigo mesma.

DIVÃ DAS LETRAS

Respostas de 5

    1. A intenção é essa. Por meio de uma psicanálise impírica, bem autodidata, mas com muita emoção aflorada, fazer saber que tantas pessoas passam pelas profusões que passamos. É uma forma de organizar os pensamentos e descobrir que a escrita também tem função reflexiva, que nos ajuda a mudar atitudes e que ajuda na cura das dores cotidianas – as dores que ninguém vê. Grata pelas impressões deixadas e pela leitura!

  1. Boa noite. Menina, fiquei impressionada com seu texto. Me vi em alguns trechos. Mas como saber o que é real ou não? Essa dúvida me levou a tentar lhe decifrar nas entrelinhas. Mas entendo que, realmente as nossas escolhas sempre serão inverdades, porque sempre haverá alguém ou algo para mudar a situação. As nossas escolhas com certeza, sempre irá depender do momento em que estamos vivendo.
    Parabéns pela sua escrita e, concordo com sua leitora quando diz que você devia escrever um livro. Eu adoraria ler.
    Continue com as sessões, elas valem muito pra nós, suas leitoras.

  2. Que texto maravilhoso, Malu! Você é uma escritora incrível, potente e sensível demais! Leio e fico impactada sempre! Obrigada por compartilhar conosco!

    1. O objetivo das partilhas são esses mesmo, de dividir o que está entalado, de deixar fluir sentimentos… saber que muitos estão passando por tantas coisas como nós, talvez mais solitários do que nós, Cilene e, vamos ser honestos, são raras as pessoas que ouvem hoje em dia… os imediatismos são muitos, os individualismos, as vaidades, os orgulhos, a correria. Ninguém tem mais tempo para olhar nos olhos, pegar nas mãos. Aí, a gente escreve. Semana que vem estarei no divã, novamente, pois minha terapeuta é muito disciplinada e tenta me disciplinar também. Beijinhos!

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