Tinha eu uns 17 anos. Estava terminando o curso normal, antigo magistério. Era glorioso estudar para ser uma professora, como de fato fui, por quase três décadas.
Foi nessa época que conheci Vera Cristina, mais tarde apelidada por mim, carinhosamente, de Veroca.
Vera é uma dessas pessoas que a gente não esquece.
Mulher miúda, cabelos repicados como os da atriz Farrah Fawcett, com muitas mechas loiras. Vestia-se impecavelmente e, por ter estatura baixa, abusava dos imensos saltos.
Adorava ver a Vera andar, descompromissadamente. Lembrava-me de Dodó, do Ziraldo – Dolores, que tinha um bumbum redondinho e rechonchudo.
Na verdade, divertia-me, porque Veroca arrancava suspiros dos homens que trabalhavam com ela e de tantos outros, por onde quer que passasse.
Ela era funcionária pública, telefonista. Esbanjava sensualidade e simpatia.
Não sei bem quando começou a nossa amizade, mas sei que começou e nunca mais acabou.
Apenas uma década de idade nos separava, porém com o passar do tempo, quanto mais nos conhecíamos mais gostava de tê-la como amiga, irmã. Era aquela pessoa pela qual a gente se afeiçoa sem notar e tem prazer em estar perto por nos fazer tão bem.
Veroca, além de trabalhar, dava conta das tarefas domésticas. Uma grande dona de casa. Tudo era impecavelmente organizado no seu lar, aparentemente tranquilo.
Casou-se muito cedo com Mauro. Assumiu ainda mais cedo a maternidade do primeiro filho.
Ela mesma chegou a dizer-me que não sabia quando as coisas tinham saído fora dos eixos.
O marido desandou. Começou a beber compulsivamente.
Nessa época Vera descobriu que estava grávida de Marília, sua segunda filha, que viria a ser minha afilhada.
Não é fácil falar de coisas ruins. Elas doem, causam mágoas, abrem cicatrizes.
Minhas observações, cada vez mais, pintavam um quadro triste de uma mulher belíssima que aos poucos fora perdendo seu viço. A melodia do seu caminhar, antes tão apreciado, passou a descompassar-se, apresentando um peso imenso.
Veroca não mais andava. Arrastava-se, carregando uma fragilidade que não lhe pertencia.
Teve um parto complicado. Marília veio ao mundo quase sufocada pelo cordão umbilical.
Saiu da maternidade com uma criança em seus braços sem saber o que encontraria em casa.
Ao contrário de uma festa, que seria muito apropriada para o momento, foi recebida com uma casa vazia. O filho mais velho estava com a avó materna e o marido estava na casa da mãe.
No dia da sua chegada do hospital fui vê-la. Queria conhecer a filha que vi crescer dentro dela.
Encontrei uma mulher triste, com os olhos inchados de tanto chorar. O leite não lhe descia dos seios.
Mauro não voltava!
Soube tempos depois que ele simplesmente resolveu voltar para a casa da mãe e apagar de vez a responsabilidade de pai.
Como pai é uma metáfora, Verinha assumiu as agruras de uma vida nova.
A vida virou-lhe de ponta-cabeça!
Aquela doçura nos olhos, o sorriso manso e a fala ponderada deram lugar a uma mulher que acabava de perder o juízo.
A mãe singela e cuidadosa fora substituída por uma progenitora totalmente desequilibrada.
Ainda bonita, sua sensualidade virou volúpia.
Aconchegou-se nos corpos de muitos amantes como forma de entorpecer suas frustrações. Perdeu as estribeiras e entrou em desalinho com sentimentos tantos, cujos danos, irreparáveis, feriram sobremaneira a si mesma.
Um dia disse-me que queria companhia para ir a uma festa.
Aceitei, porque para mim ela sempre foi a Veroca terna, sensível e amiga.
Nunca deixamos de conversar, um único dia sequer.
Nesse baile ela conheceu Pedro,
um amigo que eu não o via há muitos anos.
Quando eles se olharam ela foi logo dizendo para mim:
— Menina, que homem mais lindo!
Minha miopia não me permitiu ver muitos detalhes. Só percebi de quem se tratava quando cheguei bem perto.
Era Pedro, o menino mais problemático dos tempos de escola.
Os dois travaram conversa longa que varou noite inteira e um pouco mais.
Pedro era 10 anos mais novo do que Vera, mas essas coisas de amor, paixão, atração ou sei lá o quê, não veem na idade um fator relevante.
Veroca estava apaixonada! Menino bonito, corpo sarado, galanteador, com sempre se é em tempos de conquista.
Um pavão fazendo a corte, com todas as suas penas irisadas em verde e azul.
Minha amiga baixou a guarda.
Sentiu-se bela novamente, amada e acolhida num sentimento que há tempo lhe fazia muita falta.
Eu sabia que aquela relação tinha tudo para dar errado, mas não haveria de ser eu a responsável por dissolver os sonhos de amor perfeito de uma amiga tão querida.
Volta e meia me dizia:
— Nunca alguém me fez sentir tantas coisas boas como o Pedro.
Eu me calava! Não incentivava! Não esticava a conversa.
Não passou três meses e me vem Verinha com a novidade:
— Vamos morar juntos!
Surpresa perguntei:
— Quem vai morar juntos?
— Eu e Pedro.
— Você e Pedro?
— Sim!!!
Era alegria desmedida… Uma euforia descontrolada.
Bem, quem somos nós para compreender as sensações alheias? Que direito temos de ser os algozes da felicidade dos nossos semelhantes…
E assim foi feito! Fizeram uma festa íntima, para os amigos mais próximos fui testemunha daquele momento de emoção deles e das muitas outras que não tardaram a vir.
Como era de se esperar o amor durou pouco.
Vera era uma mulher estabelecida na vida. Tinha profissão. Era batalhadora. Impetuosa. Corajosa. Mas Pedro devorou em dois goles, sua razão e coração. E enveredou Veroca por um perigoso caminho rumo a um precipício sem fim.
Costumávamos comer pizza aos sábados, em minha casa. Pizzas feitas pela minha mãe e, pizza de mãe tem outro sabor.
Vera frequentava minha casa e enquanto esteve com Pedro o trazia a tiracolo.
A primeira vez que ele apareceu com Verinha meus pais ficaram sem saber o que fazer… o que falar… como se comportar. Pedro e Veroca pareciam fazer questão de chamar a atenção todo tempo. Eram, ambos, instáveis, criadores de situações embaraçosas, desagradáveis que evoluíam para a violência quando algo os desagradavam.
Eram uma presença tensa, mesmo quando se esforçavam para se comportarem.
Após cinco meses de união os ânimos começaram a se exaltar de vez.
Certa tarde Veroca apareceu com os braços roxos e o canto de um dos olhos machucado.
Não me contive e perguntei:
— O que houve, amiga?
— Cai no banheiro.
E assim foram sucessivas quedas inexplicáveis no banheiro, no quintal, na rua….
Incontáveis foram as vezes encontrei Pedro em casa e Verinha trabalhando. Ele havia saído do trabalho. Pediu demissão. Disse que merecia ganhar mais.
Começou a tomar conta demasiadamente dos movimentos de Vera. Transformou-se num poço de ciúmes. Ficava irritado quando chegávamos sem avisar, tratando a todos os amigos da companheira com agressividade e desrespeito.
Se Vera era pequena, encolheu-se ainda mais.
Já não era mais dona do seu carro, da sua casa e do seu salário de telefonista.
Um dia minha amiga querida apareceu completamente espancada, tarde da noite, na casa dos meus pais, pois era com eles que eu ainda morava.
Vera era da família. Nós a amávamos. Ficamos chocados com a situação. Meus pais ficaram assustados e eu cheia de remorsos, pois previ aquela situação desde o início e sentia que nada havia feito para impedir que acontecesse. Veroca era a face da tragédia de tantas outras mulheres, bem ali à minha frente.
Fui incisiva:
— Caiu no banheiro, de novo, Verinha?
Ela desabou em lágrimas deixando desaguar toda a dor contida, sabia Deus desde quando. Era uma avalanche de angústia, raiva, desilusão.
Aquela noite ficamos sabendo de coisas terríveis!
Pedro mantinha as crianças em regime de medo e tensão.
Maurinho, o filho mais velho de Veroca, contou-nos que, Pedro trancava a sua irmã no banheiro por horas. Passava fortemente a borracha nas folhas de dever quando ele acabava de fazer – para ele ter que fazer de novo.
Contou que certa vez, Pedro lançou mão de spray de matar insetos e queria que o menino abrisse a boca e tomasse o veneno. Por sorte, a mãe chegou a tempo de impedir mais esta tragédia.
Vera e as crianças passaram aquela noite em nossa casa. Na manhã seguinte liguei para seus pais e pedi que viessem buscá-la.
A irmã de Vera tomou coragem e denunciou o ocorrido à polícia. Naquela época ainda não havia delegacias próprias para casos de agressão contra mulheres.
Uma medida protetiva foi providenciada.
Pedro…
Ah! Pedro ficou enfurecido e destruiu toda a casa da companheira. Quebrou os móveis, rasgou roupas… ateou fogo no carro que ainda tinha muitas prestações pela frente.
Quinze dias do ocorrido!
Vera tinha que voltar! O trabalho a esperava. A licença médica que conseguiu para justificar suas faltas estava expirando.
Ela tinha medo!
Sabia que aquele homem não ficaria calado.
Ao ver a casa toda destruída, Vera também, sentiu-se destruída.
Aquele monstro a rondava!
Por insegurança, após sua volta, quis ficar na minha casa e assim foi…
Somente com o passar dos dias foi retomando os passos de volta ao seu abrigo.
Mal piscamos os olhos e lá estava Veroca, novamente enrabichada por Pedro.
— Ele mudou, amiga! Sente minha falta!
Repetia para mim, quando na verdade queria convencer-se a si mesma.
Não respondi. Não me envolvi, mas os pais dela sim.
Seu Aldo e dona Leila tomaram para si as dores da filha e vieram ter com Pedro.
A intervenção foi fatal.
Pedro, moço novo, cheio de força e valentia, avançou sobre seu Aldo que diante de tamanha amargura caiu estendido no chão e não mais levantou.
Infarto fulminante!
A dor que matou o pai assombra a filha até hoje.
Vera conseguiu virar a página, mas o marcador ainda está lá e a faz ler e reler essa parte fatídica da sua história que sempre volta.
Fez o que muitas mulheres fazem: superou, seguiu em frente, mas nunca se desembaraçou do fio das lembranças tristes que marcariam sua vida para sempre.
Hoje, Verinha é uma avó!
Os cabelos brancos, agora curtíssimos, me lembram a Cássia Kis.
Não quis mais saber de Pedros nem Pedrinhos de qualquer parte.
Descobriu-se inteira, com o poder de ser feliz por ela mesma, sem jamais curvar-se a quem não a merece, porque não é metade de ninguém.
Quase não vejo mais minha querida e eterna amiga Veroca, mas a distância não diminuiu e nem maculou nossa amizade!
Sabemos uma da outra e nos lembramos com ternura, com afeto, sempre.
Somos como as amizades devem ser – uma via de mão dupla onde nos agarramos quando é preciso, sem nos importar a direção a ser tomada.
Ainda me aperta o peito minha omissão em dias passados…
Mas quem sou eu para mudar o curso da vida de alguém?
[U1]Eu acrescentaria para dar mais clareza