HISTÓRIAS REAIS DA VIDA IRREAL…

PARTE 1

Maria Clara é uma criança de seis anos, nascida em berço esplêndido.

A menina não tem culpa de ser bem nascida. Aliás, ninguém tem culpa da forma de como e onde nasce.

Culpa sim tem o responsável pelo rebento, a forma como irá educá-lo.

Mas as coisas estão tão complexas, atualmente, que aqueles que constituem família com papai, mamãe, titio, titia e que janta junto todo dia, como a canção dos Titãs, esses sim, devem ter a percepção de como irá inserir o futuro indivíduo na sociedade.

Se bem que família assim, com todos os membros nomeados, avô, avó, pai, mãe, primos… essa está ou falida ou em fase de extinção, igual alguns animais existentes no ecossistema.

Clarinha aos seis anos passa os dias dentro de uma bolha, num quarto de princesa, quase em cima de uma torre. Um quarto todo rosa e lilás, com pontinhas de azuis, como são as cores dos unicórnios que lhe fazem companhia.

Vai à escola, com motorista particular. Escola bilingue, em tempo quase integral.

Faz aulas de balet, ginástica ritmica, natação, piano, canto e tantas outras atividades que foram indicadas para que ela melhore na concentração escolar, no aprendizado de matemática, língua portuguesa, história, geografia…

Acorda muito cedo e vai dormir muito tarde para dar conta de todas as atividades impostas. portanto quase não se encontra com os pais, mas a babá e a avó fazem as vezes daqueles que deram vida a criatura miúda e esquálida.

O pai é empresário famoso, no ramo do entretenimento e expert em mídias sociais. A mãe, uma mulher entrando na casa dos 30, influencer de um canal de etiquetas, moda, maquiagem e as demais coisas oriundas do mundo tão fabuloso e importante da beleza que, se deixar de existir, pode gerar o caos interminável na vida de tantos outros seres.

Clarinha está prestes a completar sete anos e a festa será preparada por serviço especializado com programação e atividades mirabolantes, afinal a filha de uma influencer tem que cooperar com a mammys famosa e o pai que é altamente conhecido entre os artistas ainda mais famosos.

A tia virá do exterior… passa férias num SPA, na Dinamarca, pois dizem que os banhos gelados fazem bem para a beleza, retardando o envelhecimento da pele.

Teresa Cristina, a tia rica, para causar impacto, compra um bebê reborn de quase 25 mil coroas dinamarquesas, que dá pouco mais de 20 mil reais.

Escolhe o bebê com todos os detalhes da foto enviada paela a mãe, de quando Clara era recém-nascida.

No dia da festa, enquanto Clarinha corre de um lado para o outro, no meio daquele mundo de adultos que ela nem conhece, a tia, pensando em causar o maior impacto, dá o presente a sobrinha.

Maria Clara abre o pacote cheio de laçarotes que dão acesso a um embrulho mais impecável ainda.

Olha a boneca. Arregala os olhos e diz: “Ela tá viva?”

A mãe fala para a filha que é uma boneca feita especialmente para ela, que é igual a ela quando era bebê.

A menina chora: “Mas eu vou machucar a boneca! Ela está respirando. Vê mamãe… “

A mãe tenta de todas as maneiras demover as impressões de desgosto da filha pelo presente caríssimo, mas tudo é em vão.

Depois de quase duas semanas, a tia, excêntrica e dipirocada, vendo a insatisfação e desprezo da sobrinha pelo presente, num ataque de doideira, joga a boneca no lixo e, como em lugar que existem coisas em demasia nada faz falta, a ausência da boneca não foi percebida e a vida flui, num mundo de faz de contas completamente surreal e distópico.

PARTE 2

Zezé é ambulante e, depois de passar o dia vendendo guloseimas industrializadas nos semáforos, por volta das quatro da tarde, quando o sol se torna mais ameno, corre para o aterro sanitário que fica quase duas horas longe do barraco onde mora, na Viela dos Bichos, na Comunidade do Godofredo.

Lá ela cmpleta sua renda, pois enquanto uns vivem de desperdícios, Zezé vive do lixo, das sobras, dos descartes… vive na miséria que muitos fazem questão de não ver.

Veste suas luvas, calça suas galochas, já rachadas, que ficam guardadas numa sacola plástica, enfiada um buraco na entrada do aterro.

A lida é difícil! Igual a dos garimpeiros que se aventuram a procurar ouro – o garimpeiro se contamina com arsênio e mercúrio e Zezé com o fedor insano e a proliferação das mais diferentes e resistentes bactérias ao alpinar os altos montes de lixo.

Mas naquela tarde foi um alvoroço.

Tinha mais gente vasculhando pérolas no aterro.

Zezé foi logo gritando: “Que farra é essa minha gente? Perderam o emprego? Papai Noel pouso antes do tempo deixando presentes e eu não estou sabendo?”

“A vida tá dura Zezé! A Janaína disse que tem encontrado coisas boas por aqui e eu preciso de um sapato. Só um par de sapato me basta”

“Tá querendo demais, Zenão! Aqui o que se consegue é um pé de sapato mais ou menos parecido com o outro!”

“Tá certo, Zezé, mas mesmo assim já tá de bom tamanho!”

“Vamos lá, amigo, lhe ajudo a encontrar o que precisa.”

E entre as buscas, virando coisas de um lado, revirando do outro, Zezé deu um grito e paralizou, feito gente que viu fantasma ou algo pior.

“Zenão! Zenão! Jesus amado! Pai Eterno! Achei um corpinho! Uma criança! Olha só, no meio do lixo? Quem joga uma criatura linda dessa morta, dentro de um lixo, pra parar aqui?”

“Zezé, é um bebê! Não mexe! Chama a polícia!”

Juntou mais de vinte pessoas que ali estavam, em volta do achado.

Uns encostavam a mão de leve e falavam: “Tá fria, mas não está dura! Morreu faz pouco tempo!”

Carlão advertia que não deveriam mexer.

Uns tiraram o celular dos bolsos e começaram a filmar e enviar para os amigos a criança morta que encontraram no lixão.

Não deu dois minutos, bem antes da polícia, a imprensa já estava presente, fazendo filmagens e noticiando em seus canais, em tempo real.

Dona Hilda, à frente da teve, quase teve uma síncope cardíaca.

Era a neta!

Era Clarinha!

Gritou para a cuidadora: “Lúcia, a Clara morreu! A Clarinha morreu! Socorro! Quero falar com minha filha!”

A cuidadora corre para acudir Hilda, quase roxa de tanto desespero.

Lúcia olha para o noticiário e tenta acalmar a senhora.

“Dona Hilda, a Clarinha tem sete anos. É apenas um bebê parecido que acharam por infelicidade e tristeza, num aterro!”

Mas foi um custo demover dona Hilda de tudo aquilo que ela via.

Lúcia sentou ao lado da idosa e foi acompanhando as notícias.

Logo a polícia chegou e junto dela os peritos que, com todo cuidado foram retirando restos de comida, papel higiênico, garrafas e papéis que estavam por cima da linda criança.

Nunca tanta gente chegou tão rapido ao aterro.

Parecia formigueiro em dias de extremas doçuras.

Uns choravam… Outros vociferavam…

Até que um dos peritos ao terminar de tirar a ultima latinha que estava sobre a criatura e pegá-la nos braços percebeu que se tratava de uma boneca. Uma boneca tão realista que foi capaz de desviar dezenas de profissionais que poderiam elucidar, naquele momento, um crime de verdade.

Zezé olho para Zenão que olhou para Carlão que por sua vez olhou para Cida…

O silêncio permaneceu por alguns segundos que pareceram uma eternidade.

Zenão perguntou para Zezé: “Quer essa boneca pra você?”

“Eu não! Troço esquisito! Não tem vida e parece que tem!”

“E você Cida? Tem menina pequena em casa. Quer levar pra ela?”

“Deus me livre, Nosso Senhor. Vai que essa coisa fique doente e não tenho remédio para meus fios, quem dera pra essa coisa!”

Zezé gritou de cima do monte mais alto de lixo: “Zenão, achei um par de tênis novinho pra você! O bom é que são iguais mesmo… o ruim vai ser você tirar esse chulé!”

Quanto a boneca? O tal do BEBÊ REBORN?

Bem a cópia fiel de Maria Clara ficou ali, jogada, esquecida, rechaçada por aqueles que nem sabiam que aquela coisa tão infame existia.

Facebook Comments Box